Da Lama ao Pó

Por Antonio Paulo Benatte

A cor forte da terra marcou a psicologia do londrinense. Não é à toa que a bandeira do município é vermelha, superando até mesmo a conotação ideológica dessa escolha (o vermelho era cor de “comuna”, principalmente se lembrarmos que, nos anos 50, o movimento anticomunista foi forte na região, numa época em que as Ligas Camponesas organizavam-se e os conflitos de terras explodiam no Paraná).

Mas a bandeira, encomendada ao poeta modernista Guilherme de Almeida, permaneceu vermelha. Da cor da terra do sertão conquistado à floresta, aos índios, aos caboclos e aos animais.

Há na relação com a tez da terra um forte fator de identidade local e, extrapolando as fronteiras políticas do município, de identidade regional. O vermelho identifica de certa forma o londrinense.

Em Curitiba e em outros lugares, ele é chamado “o pé vermelho”, expressão que carrega um certo estigma: é a imagem do sertanejo, do interiorano, do caipira, do bruto, do jacu.
Diz-se, por exemplo, que, na praia, não é difícil localizar o londrinense: basta seguir as pegadas vermelhas impressas como xilogravura na areia branca.


Nesse caso, o vermelho aparece como sinônimo de pouca civilização, remetendo a um
de seus estereótipos, o da sujeira (um pouco como os brancos vêem os índios como sujos, quando na verdade o índio tem uma outra noção do que seja o sujo e do que seja o limpo).


E, de fato, o visitante que chega à cidade, vindo de terras claras ou cobertas por negras passadeiras de asfalto, choca-se com a vermelhidão da cidade: o tom forte da terra impregnado no piso das ruas, nas paredes, nos muros, nos rodapés das casas, nos sapatos das pessoas; percebe a vermelhidão como uma segunda pele das pessoas; vê a terra roxa, como dizia o escritor João Antonio, impregnada em tudo: pessoas, animais e coisas.

Mas - fato muito importante - o londrinense se identifica com essa cor, porque ela é a cor de sua pequena diferença. Não apenas a diferença mais evidente do “Norte” (do Paraná) em relação ao “Sul” e, através dessa clivagem histórica, a afirmação de uma identidade culturalmente diferente.

Mas também uma diferença relativa a qualquer “outro” e, portanto, uma diferença absoluta. Daí muitas vezes o ufanismo bairrista tão característico da gente do lugar, ndependentemente de ideologias e classes sociais.

Separatismo

Sem dúvida, a incorporação do vermelho como símbolo afirma, para além do estigma que carrega, as peculiaridades do londrinense em relação aos paranaenses do chamado “Paraná tradicional”, identificado, um pouco a despeito da geografia, com o “Sul”.

Porque o londrinense não se imagina nesse Sul que englobaria desde os Campos Gerais até os Pampas gaúchos. Não se inclui naquilo que Oliveira Viana chamou as “populações meridionais do Brasil”.

E esse sentimento de não-pertencimento não raro descambou para um ideal (mais latente que manifesto) de separatismo: nos anos 50 chegou-se a cogitar a criação do Estado do Paranapanema, que englobaria toda a Região Norte, oposto ao Estado do Paranapamonha, que englobaria o resto do Paraná.

A idéia, como sabe a história, não vingou, mas o trocadilho conservou seu significado de afirmação das diferenças. E isso porque a população do Norte do Paraná, por razões históricas que remetem à colonização, identifica-se mais com os paulistas que com os paranaenses.

Para muitos, a região que se convencionou chamar Norte do Paraná é, na verdade, a continuidade do Oeste Paulista do outro lado do Paranapanema. Nos anos 30, 40 e 50, e um pouco até os dias de hoje, os paranaenses “tradicionais” sentiam-se, no norte do Estado, como estrangeiros em sua própria casa.

Exatamente porque não reconheciam essa casa como sua ou porque ela não fosse, afinal de contas, realmente sua.

A ligação umbilical e a extrema dependência em relação a São Paulo no início da colonização, a origem paulista da maioria dos chamados pioneiros, a continuidade da marcha cafeeira paulista em terras paranaenses, a precária ligação com Curitiba em termos de transporte e comunicação etc., tudo isso explica em parte essa identificação cultural com os paulistas que está na origem das peculiaridades dos londrinenses.

A cor escarlate da terra é um signo, uma síntese disso tudo.

Tudo é Vermelho

Mas convém lembrar que o vermelho do pó e da lama, antes de ser um signo positivo, foi exatamente o seu contrário, quer dizer, um símbolo da dificuldade e da precariedade da vida no sertão.


Nas primeiras décadas da cidade, os viajantes comerciais que por ela transitavam diziam, ironicamente: “Londrina, cidade de fama; quando não há pó, há lama”. A poeira vermelha e fina, em tempos de clima seco, e a lama barrenta, quando da época de chuvas, dominavam as conversas, os ditos e as imprecações da sociedade pioneira, isto é, de uma população que se percebia vivendo na fronteira da civilização, num lugar-limite.

Alberto João Zortéa contou em seu livro de crônicas, que um ferreiro da cidade chegou a inventar uma “ferradura para homens”, dispositivo criado especialmente para evitar que a lama grudenta formasse plataformas na sola dos sapatos.

Em 1953, o então repórter Rubem Braga, numa crônica de viagem, registrou a dificuldade em manter limpos o corpo e as roupas. E o geógrafo Pedro Geiger, em pesquisas na região, dizia que o pó e principalmente a lama, acentuavam ainda mais as características da cidade pioneira, nova, improvisada, rústica.

Nas duas ou três primeiras décadas de constituição da cidade, o vermelho invencível da terra representava, antes de tudo, a incipiência do progresso e da civilização.

Todavia, como costuma acontecer com freqüência, o objeto de ódio foi socialmente convertido em objeto de amor. O vermelho da terra transformou-se rapidamente em prova de sua fecundidade, base de um progresso que teve na cafeicultura a principal atividade econômica.

Com o status de “capital mundial do café”, ser pé-vermelho não soava mais pejorativo; pelo contrário, passou a ser uma expressão de orgulho por uma aparente independência e auto-suficiência regional (que a crise da cafeicultura logo desmentiria).

Esse orgulho não atingia apenas os poucos que enriqueciam com o café, mas potencialmente toda uma população que se via como construtora do progresso, e mesmo aquela grande parte excluída desse progresso, quer dizer, os trabalhadores e os despossuídos em geral.

Publicado em O Popular, Londrina, nº 16,

Dos jogos que especulam com o acaso

Por Antonio Paulo Benatte


Resumo

A tese busca historicizar a invenção, na sociedade brasileira do final do século 19 a meados do século 20, da noção moderna de "jogo de azar".

Em torno de dois eixos teóricos (objetivação e subjetivação), o texto procura articular os temas mais freqüentes na problematização dos jogos que especulam com o acaso.

Ligados aleatoriamente pelo conectivo E, os nódulos temáticos emergem a partir da análise de alguns fluxos sociais e culturais: o processo de civilizaçãodos hábitos e costumes; a busca da intensidade na economia das emoções; a esconjuração do acaso no processo de racionalização da cultura; a negação da despesa pela moral econômica burguesa; a criminalização e o controle das práticas lúdicas populares; a renitência da vida improdutiva e dos excessos dissipatórios; a interiorização do horário e o aparecimento do lazer como uso higiênico do tempo livre; a linha de fuga do jogo como transcendência do cotidiano numa sociedade disciplinada para o capitalismo de produção

Abstract:

The dissertation attempts to historicize the invention of the modern notion of "gambling" from the end of the 19thcentury to mid 20thcentury. The text tries to articulate the most frequent themes related to the questioning of games that speculate with the odds, around two theoretical axes (objectification and subjectification). Ramdomly connected by the connective AND, the thematic nodules emerge from an analysis of some social and cultural flows: the process of civilizing habits and costumes; the search for intensity in the economy of emotions; the adjuration of the odds in the process of rationalization of culture; the denial of the expenditures by the bourgeois economic moral,; the criminalization and control of popular playful practices; the renitency of nonproductive life and of the dissipating excesses; the internalization of time schedule and the appearance of leisure as hygienic use of free time; the lines of flight of the game as transcendence from everyday life in a disciplined society for the capitalism of production
Data da defesa: 26-06-2002 Código: vtls000249900 Informações adicionais:
Idioma: Português Data de Publicação: 2002 Local de Publicação: Campinas, SP Orientador: Luzia Margareth Rago Instituição: Universidade Estadual de Campinas . Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Nível: Tese (doutorado) UNICAMP: Programa de Pós-Graduação em História

Uma orgia do café

O livro O Centro e as Margens: Prostituição e vida boêmia em Londrina (1930-1960), do historiador Antonio Paulo Benatte, trata de uma história sócio-cultural da prostituição e da vida boêmia em Londrina e no norte do Paraná durante a fase áurea da economia cafeeira na região.

O primeiro capítulo narra a história das formação da cidade desde 1929, quando não passava de uma "boca de sertâo", até os anos 50, quando Londrina se torna conhecida como "capital mundial do café".

O segundo capítulo narra a constituição e metamorfoses do mundo da prostituição e da boêmia.

O terceiro capítulo narra as estratégias de policiamento e controle que recaíam sobre a vida noturna, especialmente sobre as prostitutas.

Trata-se da história de uma verdadeira "orgia do café".

A riqueza gerada pela cafeicultura atraiu grandes contingentes populacionais e, em meio a esse fluxo de gente, atraiu também prostitutas, gigolôs, jogadores, marginais e aventureiros de toda espécie.

A vida noturna local tornou-se uma das mais intensas e frenéticas do país, dando origem a uma série de histórias e memórias.

Ao recuperar e trazer para um campo de visibilidade essas memórias e histórias, Antonio Paulo Benatte compõe um variado painél dos arranjos e conflitos entre a "sociedade da ordem" e a "ordem do prazer", contribuindo, assim, para a escrita de uma "história dos marginais" no Brasil moderno.